Fernando Neves, Ph.D.
E foi aí que apareceu a raposa…
— Bom dia, disse a raposa.
— Bom dia, respondeu educadamente o pequeno príncipe, apesar de que não a viu em canto nenhum quando se virou.
— Estou aqui, ao lado da macieira.
— Venha brincar comigo— convidou o pequeno príncipe— Estou um tanto infeliz…
— Eu não posso brincar contigo, ainda não fui cativada.
— Ah! Me desculpe— disse o pequeno príncipe. Mas, após pensar um tantinho, perguntou:
— O que isto significa, cativar?
— Você não é daqui. O que é que veio buscar nessas redondezas?
— Eu busco por pessoas. O que significa cativar?
— As pessoas têm armas, e nos caçam. É algo muito perturbador. Elas também costumam criar galinhas. Bem, estes são os seus únicos interesses… Você procura por galinhas?
— Não. Eu procuro por amigos. O que significa cativar?
— É algo muito esquecido hoje em dia — disse a raposa — Significa criar laços.
— Criar laços?
— Isso. Para mim, por exemplo, você ainda não passa de um garotinho, igual a cem mil outros garotinhos. E eu não tenho necessidade alguma de estar em sua presença, assim como você não tem necessidade de estar na minha. Afinal, para você eu não passo de uma raposa, igualzinha a cem mil outras raposas que existem por aí… Se você me cativar, no entanto, nós passaremos a ter a necessidade de estarmos juntos. Para mim, você será um garotinho único em todo o mundo. E para você, eu serei uma raposa como nenhuma outra na Terra…
A raposa ficou olhando para o pequeno príncipe por um bom tempo, e depois lhe pediu:
— Por favor, me cative!
— Eu gostaria muito, mas eu não tenho tanto tempo. Eu tenho amigos por descobrir, e muitas coisas ainda por compreender.
— Alguém só consegue compreender aquilo que cativa. As pessoas já não têm tempo para compreender coisa alguma. Elas compram tudo pronto nos seus mercados, mas não há loja alguma onde a amizade possa ser comprada, e assim as pessoas não têm mais amigos. Se você realmente quer um amigo, me cative…
Este pequeno trecho do livro ¨O pequeno Príncipe¨ foi publicado pela primeira vez em 1943, mas ele toca em um ponto que é muito atual na nossa sociedade pós-moderna. As pessoas não têm tempo para relacionamentos, tudo que se quer é comprar pronto ou estabelecer networking para ser utilizado quando for preciso.
Zygmunt Bauman, autor e filósofo polonês (1925-2017) chama isso de modernidade líquida. Já não há relacionamentos, mas conexões. O mundo corporativo é apenas um ¨print¨ de como as pessoas se relacionam. O meu cliente é importante enquanto me dá lucro, o meu chefe ou subordinado é importante enquanto trabalhamos juntos. Amizade é algo para quem tem tempo e no mundo líquido de hoje poucos o têm.
A raposa pede ao pequeno príncipe que a cative, porque eles são estranhos um para o outro, mas ele não tem tempo. No entanto, paradoxalmente ele procura por amigos. A raposa o ensina que para desenvolver a amizade é preciso despender tempo, doar de si mesmo ao outro sem interesses sejam eles sociais ou comerciais.
Mas o que isso tem a ver com relações corporativas? Afinal, as relações de trabalho não são mesmo superficiais ? O que se busca não é o lucro ou atingimento de metas? Bem, este é um paradigma. É possível fazer diferente. Ao estabelecer um novo paradigma automaticamente criamos uma vantagem competitiva, não mais por interesse, mas como recompensa. Criar laços é o que nos diferencia como seres humanos e se queremos nos manter relevantes é preciso trazer de novo a nossa essência aos relacionamentos.
Fala-se muito de soft skills e inteligência artificial, mas basta olharmos para dentro de nós mesmos para entendermos que essa mudança de paradigma pode ser mais natural do que parece. O problema é que na sociedade de produção, o ser humano foi tratado como uma engrenagem, uma máquina. Chaplin (1889-1977) já denunciava isso com sua arte. É incrível como temos medo da máquina inteligente, porque ela toma o nosso lugar. A única saída possível para nós na era da inteligência artificial é buscarmos o que de melhor sabemos fazer e ser: Agir, sentir e relacionar como humanos que somos.
Escrevo este texto no ano de 2020 em meio à pandemia do coronavírus que isolou ainda mais as pessoas. Na verdade, as pessoas já viviam isoladas cada um no seu mundo individual, seu computador ou celular e já não estabeleciam relações de fato. Agora temos tempo, mas perdemos a oportunidade de nos conectarmos fisicamente.
Assisti recentemente à palestra da Michelle Schneider no TED- FAAP . Ela começa sua palestra contando um episódio que aconteceu com ela quando estava voltando do Rio de Janeiro para São Paulo pela ponte aérea. Naquele momento, ela vivia uma das épocas mais difíceis de sua vida profissional. Não tinha boa qualidade de vida e sequer se alimentava bem. Já dentro do avião, ela se preparava para abrir o computador e começar a trabalhar quando a aeromoça lhe informou que como estava na saída de emergência não era permitido o uso do notebook. Sem saber o que fazer, ela então pede para mudar de assento, mas não consegue porque o voo estava lotado.
De repente ela ouve uma voz se dirigindo a ela e dizendo:
— Por que você não aproveita estes quarenta minutos pra você? Eles não vão mudar nada na sua vida — Ela então se vira e vê um homem simpático sorrindo e continua falando com ela — Sabe que eu já me mudei do Brasil faz um tempo, mas me assusta cada vez que venho pra cá, ver as pessoas trabalhando e vivendo nesse ritmo e me dar conta de que eu vivia exatamente assim — Ela diz que ficou envergonhada e tentou levar o assunto para o esporte, mas ele insistiu — E o computador, hein? O que tem nele de tão importante?
Ela contou que trabalhava no LinkedIn e ele perguntou se ela conhecia o Osvaldo, que era o CEO da empresa na época. Ela então responde que sim e pergunta: — Mas de onde você o conhece? Ao que ele responde: — Eu vim desse mercado. Fui eu quem trouxe o Google e o Facebook para o Brasil. Ela estava diante de uma das maiores referências no setor de tecnologia: Alexandre Hohagen. Em resumo, a conversa rendeu muito mais a ela que o mergulho nas planilhas em seu computador com a desculpa de falta de tempo.
A história dela me chamou a atenção, porque é exatamente assim que a maioria de nós nos relacionamos com nossos empregos, afazeres e nos sentimos confortáveis com o isolamento em meio à multidão. O computador ou o celular é o refúgio que nos blinda das pessoas, que nos livra das conversas na fila do banco ou nos check ins dos aeroportos. Quantas oportunidades reais passam à nossa frente e as perdemos todos os dias? Quantas amizades perdidas que não podem ser simplesmente compradas ou baixadas na internet, como sabiamente ensina a raposa ao jovem príncipe.
Bauman vai mais além em sua análise do nosso comportamento. Em seu livro 44 cartas para o mundo líquido moderno ele dedica um capítulo inteiro para falar da solidão em meio à multidão. Ele diz que na verdade sofremos com a solidão, mas usamos estes aparelhos para preencher os espaços vazios de estar no meio da multidão, porém sozinhos.
Bauman toca na ferida quando diz que os lares estão cada vez mais vazios durante o dia. O coração e a mesa de jantar da família foram preenchidos primeiramente pela TV e agora com os tablets e celulares com cada indivíduo preso em seu próprio casulo. Ao tocar no cerne da família ele deixa claro que a causa não é o trabalho, mas o comportamento das pessoas, já que também as famílias sofrem do mesmo mal.
Como dizer não e mudar de rota? Como criar o hábito de criar laços? Como solidificar a liquidez ao menos nas minhas relações? É preciso aprender com a raposa que responde ao pequeno príncipe quando ele pergunta: — O que preciso fazer para lhe cativar? E ela responde:
— Bem, você precisa ser muito paciente. Primeiro, você vai se sentar a uma certa distância de mim – desse jeito – na grama. Então eu olharei para você de canto de olho, e você não deverá dizer nada. Palavras são uma fonte de mal entendidos. A cada dia, no entanto, você irá se sentar um pouquinho mais perto de mim…” No outro dia o pequeno príncipe retornou ao mesmo local…
— Teria sido melhor que viesse no mesmo horário, disse a raposa. Se, por exemplo, você vier às quatro da tarde, então desde às três da tarde eu já começarei a ficar feliz. Daí eu ficarei cada vez mais feliz na medida em que as horas forem passando. Às quatro horas, eu já estarei inquieta e preocupada, mas lhe mostrarei o quão feliz fiquei em lhe ver! Mas se você vier a qualquer hora, eu nunca saberei em qual hora meu coração deverá se preparar para recebê-lo… É preciso que obedeçamos a certos ritos…
— O que é um rito? Perguntou o pequeno príncipe.
— São coisas que também foram esquecidas nos dias de hoje — disse a raposa— os ritos são o que faz um dia ser diferente do outro, e uma hora diferente da outra.
Paciência, dedicar tempo, atentar aos detalhes, conhecer o outro, perceber o outro mesmo sem dizer nada, ritos… Apenas algumas dicas básicas. Na verdade, para romper com nosso velho comportamento basta seguir o instinto, basta sermos mais humanos.
Referências Bibliográficas
O Pequeno Príncipe. Antoine de Saint-Exupéry
44 Cartas para o Mundo Líquido Moderno. Zygmunt Bauman. Editora Zahar
TED- Talks – FAAP- O Profissional do Futuro – Michelle Schneider